A incrível história do escravo Michael e o casaco russo.

Em tempos que já lá vão, existia um reino habitado por gente morena, bem disposta, amante do vinho tinto e de lulas de caldeirada. Existiam nesse reino homens e mulheres, médicos e homens da lei, magos e feiticeiros, pessoas dedicadas à arte e às letras, programas de televisão, felicidade, inveja, riqueza e desgraça, como em todo lado há, como em todo o lado houve, e sempre haverá.

Até agora a nossa história nada tem de interessante, o que se torna aborrecido, porque não é à toa que se perdem minutos preciosos a ler contos surrealistas escritos por jovens imaturos, ingénuos e com muito pouca experiência, quando se podiam passar momentos mais interessantes a jogar dominó, conversando sobre o preço da couve-lombarda ou acompanhado por algumas bailarinas italianas. Por isso, continuemos.

Era dito que nesse reino haviam Senhores, homens ilustres, cultos, e profundamente humanistas, que com grande sacrifício prescindiam da sua felicidade e de seus próprios sonhos, apenas para poder prestar serviço ao seu próprio reino, governando-o de uma forma pluralista e profundamente tolerante, impregnando a terra de justiça; demonstrando uma abnegação quase santa, sacrificando-se em prol dos seus semelhantes! Existia nessa terra, porém um feitiço. Graças a esse feitiço, aí colocado em tempos por alguém que desapareceu e nem sequer deixou o número de telefone, passou a viver-se numa atmosfera mágica, onde a fronteira entre a realidade e a fantasia, a mentira e a verdade, se tornou tão ténue como a esperança do Sporting em ganhar a liga dos campeões alguma vez possa ter sido. Os governantes desse reino mantinham o apreço dos seus semelhantes através de uma indústria poderosa de produtos fantásticos, demarcando-se uma em particular: a indústria das fábricas de diplomas. Estes diplomas eram mágicos, porque embora não conferissem aos habitantes mais jovens a quem eram oferecidos qualquer tipo de dom, conhecimento, sabedoria ou capacidade, davam-lhes o generoso direito de serem considerados membros reconhecidos do reino, pessoas capazes e membros integrados no seu país. Nesta indústria trabalhavam os escravos das fábricas de diplomas.

Pode parecer estranho que houvesse escravidão nesta terra, mas isso faz parte do feitiço, porque ninguém se apercebia que escravos houvesse, nem os próprios escravos, muitas vezes, excepto quando aquela corrente nos tornozelos começava a ficar enferrujada. No entanto, os escravos não eram pessoas felizes, porque nenhuma escravidão traz felicidade, e passavam o tempo a imprimir diplomas, queixando-se do seu infortúnio e de quão pobrezinhos eram. Havia então nesse reino uma terra chamada Lar do Castelo, e nessa terra estava uma dessas fábricas, que aparentemente nada tinha de diferente em relação a qualquer outra fábrica de diplomas. Acontece que aí vivia um escravo chamado Michael, e aqui começa a nossa história. Michael era um escravo esforçado e brincalhão, um coleguinha amigo dos seus amigos. Tinha um ar jovial, e discreto, e estava sempre com muito frio. O escravo Michael tinha frio, e como ninguém é perfeito, um dia encontraram-se pequenos pingentes de gelo colados ao seu nariz. Há quem diga que o termómetro acusava a descida da temperatura quando ele passava; e que às vezes tremia tanto, que seus colegas, assustados, indagavam-se acerca da presença de algum fiscal da fábrica de diplomas, tentando vender dicionários de crioulo. Um dia então comprou um casaco, mas como não queria um casaco rasca qualquer, acabou por adquirir um casaco russo. Era um casaco de uma beleza indescritível, castanho-claro, e com um corte austero, mas também elegante, e confortável, pelo que Michael podia mexer os braços com frequência, olear e girar as manivelas da máquina de fabricar diplomas, e até beber um café, às vezes; ou dar umas palmadinhas nos ombros dos colegas que tossiam. O casaco russo tinha duas abas compridas, e quatro bolsos, onde Michael guardava umas moedinhas e o retrato da avó. Havia também bonitos desenhos com motivos rupestres costurados nas mangas do casaco e doze botões de madre-pérola que brilhavam como estrelas quando Michael passava, iluminando o trabalho dos outros escravos na penumbra sombria das caves frias onde trabalhavam no fabrico dos diplomas. O casaco russo era mágico, sabem? Porque os escravos da fábrica de diplomas do Lar do Castelo passaram a viver contentes no seu trabalho, brincando uns com os outros e fazendo graças acerca do ministério da fábrica de diplomas, sorrindo e cantando em uníssono «quer eu queira, quer não queira não me deste liberdade …» e também algumas cantigas mais velhas do José Cid, enquanto imprimiam os diplomas na fábrica. Mas um dia, o casaco russo desapareceu. Pensava-se que pudesse ter sido roubado por algum energúmeno friorento, mas a verdade é que até hoje ninguém sabe como foi perdido, e mais grave ainda, perdeu-se o registo da acta que dava conta desse desaparecimento, porque alguns dos escravos faziam aviõezinhos com as actas quando não havia papel de rascunho. A tristeza abateu-se sobre o Lar do Castelo. Anteriormente um lugar de comunhão e partilha, onde os escravos viviam como uma grande família, tornou-se um sítio de inveja e vícios, onde escravos liam o Record em vez de trabalhar, um lugar de intrigas e maldade, onde colegas se sacaneavam uns aos outros, roubando o papel higiénico da casa de banho aos escravos aflitos, fazendo queixinhas uns dos outros aos fiscais ou pondo pimenta no café dos mais distraídos. Chovia granizo no Lar do Castelo. Grandes inundações deixaram as ruas intransitáveis, mesmo para os governantes ou para os bodes que costumavam pastar nas redondezas, e grandes nuvens cinzentas escondiam o sol outrora radioso, deixando morrer as árvores e os fungos que habitavam a barba do senhor da repografia. Os fiscais das fábricas de diplomas apareciam então quase todos os dias, criticando os escravos que usavam calções ou que tinham algum botão desapertado, e o ministério mandou instalar um amplificador e uma cassete no bar da fábrica de diplomas, que tocava o dia inteiro, ouvindo-se

«os escravos da fábrica de diplomas deverão tomar estratégias de remediação, respeitando o normal estado de desenvolvimento dos jovens beneficiários da fabrica de diplomas, permitindo a sua integração na nossa sociedade democrática e garantindo as taxas de produção desejáveis.»

Foi então que Michael teve que tomar a decisão de procurar o casaco russo, porque os colegas colocaram-no entre a espada e a parede, fazendo uso de um velho sabre malaio oferecido aos escravos por um estudioso da cultura oriental. Michael ficou sem saber o que fazer. Dirigiu-se então ao um colega a quem chamavam o teórico. O teórico era um rapaz alto e magro, de cabelo castanho e ligeiramente estrábico, pálido como a cal, e um dos poucos contestatários das fábricas de diplomas. Havia um esgar profundamente cínico na sua expressão. Quando interpelado pelo seu colega, o teórico simplesmente respondeu:

«Estou desolado, mas nada posso fazer. Sou um jovem ingénuo, apenas escrevo equações nas costas das actas e faço contas sem a máquina de calcular, às vezes. Recuso-me a embalar alguns diplomas que a fábrica produz quando estão muito borrados, mas isso de nada serve, porque os meus colegas mandam até esses diplomas borrados para serem entregues, na mesma. O que posso fazer ? Repara, eu faço isto há tão pouco tempo. É preciso confiar na experiência. Procura o mago, ele pode ajudar-te».

E após ouvir estas palavras, Michael pediu um conselho ao mago, outro escravo lá da fábrica. Ora, o mago tinha uma figura pouco habitual de se observar, um escravo imperturbável, dono de uma serenidade própria dos orientais. Media sensívelmente um metro e noventa, era já um pouco grisalho e usava uma barba aparada e bem cuidada. Possuia uma estrutura física poderosa, escondendo-se para muitos uma sensibilidade que sua aparência certamente não faria supor.

Apesar de escravo, mantinha a dignidade de uma pessoa livre, e havia na maneira como olhava para o seu perturbado colega um misto de gozo e afecto. A bem dizer, o mago era o único que não estava enfeitiçado, por ser ele próprio um feiticeiro; e às vezes conseguia umas magias porreiras, como fazer passar jogos de futebol na televisão, nos dias mais chatos, em que a equipa que ganhava era sempre a nossa e não aqueles gajos italianos.

«Não sei o que hei de fazer - disse Michael - o casaco russo desapareceu e sem ele ninguém mais aqui será feliz. Porque hei de ser eu a procurá-lo? Porque não vão procurá-lo os outros ?»

«É exactamente com essa atitude que o casaco não vai aparecer mesmo. Repara, casacos russos não caem do céu. A não ser, é claro, com aquele helicóptero velho azul lá da Junta. De qualquer modo, pensa assim: se o casaco não aparecer, serás linchado mais cedo ou mais tarde, o que é desagradável: ou pelos colegas, ou por um fiscal das fábricas se te encontrar a fazer uma vigilância à máquina dos diplomas com o cabelo despenteado. Vá lá, homem. Faz-te à vida.»

«Mas eu tenho medo, há tantos perigos lá fora! Posso ser raptado por extraterrestres! Posso tropeçar e partir o pescoço. Estou há tanto tempo nesta fábrica, nem me consigo imaginar a conseguir fugir daqui. E se sou encontrado por algum fiscal? Qual será o meu destino?»

«Qualquer destino é melhor que o destino de um covarde. O casaco é teu, não serve a mais ninguém. Metes um artigo e vais lá em serviço. Põe-te a andar».

E foi assim que o escravo Michael partiu em busca do casaco russo. Viajou até à capital do reino, num autocarro velho e cheio de gente, sentado ao lado de um velhote que pigarreava constantemente, emitindo impropérios acerca do tempo e do estado das estradas. Simultaneamente, uma senhora gordíssima de grandes olhos azuis encostava-se insistentemente a Michael, nitidamente numa atitude sedutora, piscando- lhe os olhos de vez em quando. A certa altura, a situação tornou-se crítica, quando esta mulher se sentou ao lado dele, e mais ainda quando, elogiando o corte de cabelo recente do escravo, começou a fazer-lhe festas meigas no pescoço, sussurrando-lhe marotices ao ouvido… Mais tarde, então, quando chegou à cidade, Michael dirigiu-se de imediato ao ministério das fábricas de diplomas, procurando ajuda para encontrar o casaco russo. Foi atendido por uma funcionária atarefada que o olhou com um ar de desprezo e lhe mandou tirar uma senha, dizendo-lhe que subisse até ao nono andar, onde outro funcionário lhe mandou tirar uma nova senha e voltar de novo ao primeiro andar. Nessa altura, foi atendido pela mesma funcionária que lhe deu um impresso, cobrando-lhe algumas moedinhas por isso, e enviando-o de novo ao nono andar, onde ainda outro funcionário lhe perguntou, finalmente, o que queria, e porque razão o perturbava na hora de tomar o cafézinho. Michael começou a tentar explicar a sua situação, sendo logo interrompido por este homem, que lhe disse:

«Ha, mas você é escravo! É escravo!»

«Sim sou escravo, da fábrica de diplomas do Lar do Castelo.»

«Mas porque não disse logo? Pensei que fosse um dos rapazes que costuma vir buscar o lixo. Mas, não, não diga mais nada. Não o posso ajudar. A única informação que tenho para si é esta: «os escravos da fábrica de diplomas deverão tomar estratégias de remediação, respeitando o normal estado de desenvolvimento dos jovens beneficiários da fábrica de diplomas, permitindo a sua integração na nossa sociedade democrática e garantindo as taxas de produção desejáveis.» É tudo o que posso dizer.»

E, acto contínuo, o funcionário virou as costas, desaparecendo por um corredor sombrio, rangendo os sapatos no soalho e rindo baixinho. Deprimido, Michael tentou procurar outras pessoas, mas não encontrou ninguém que lhe desse ouvidos; ou quando era esse o caso respondiam-lhe sempre:

«os escravos da fábrica de diplomas deverão tomar estratégias de remediação, respeitando o normal estado de desenvolvimento dos jovens beneficiários da fábrica de diplomas, permitindo a sua integração na nossa sociedade democrática e garantindo as taxas de produção desejáveis.»;

deixando Michael abatido e sem reacção. Nesta altura já lhe doíam os pés, de tanto subir e descer escadas, e por causa daquele calo de estimação que teimava em não desaparecer. Contudo, após muitas horas, Michael encontrou a porta do gabinete dos chefes do ministério da fábrica de diplomas. Bateu, e, como não obteve resposta, entrou, deparando com os chefes do ministério praticando esgrima uns com os outros. Michael pediu desculpas pela intrusão, justificando-se com várias vénias, e logo expôs o seu problema, ao que um dos chefes respondeu:

«Verifica-se, escravo Michael, que possui uma estatura sete centímetros superior à média desejada, o que não é estatisticamente normal. Não sei se conhece a curva de Gauss? Provavelmente é essa a causa do problema. A estatura normal para o escravo competente do sexo masculino é apenas de um metro e setenta. Assim sendo, propomos que lhe sejam retiradas algumas vértebras, de modo a que possa adaptar-se ao sistema, porque, como sabe, os escravos da fábrica de diplomas deverão tomar estratégias de remediação, respeitando o normal estado de desenvolvimento dos jovens beneficiários da fábrica de diplomas, permitindo a sua integração na nossa sociedade democrática e garantindo as taxas de produção desejáveis.»

Foi então que ocorreu algo de inusitado. O escravo Michael, durante tanto tempo um elemento cumpridor na sua fábrica de diplomas, sentiu crescer em si uma revolta inesperada, e, guiado por um impulso irreversível, uma vontade invencível e dominadora, decidiu fazer o impensável: atribuiu-se a si próprio o direito de agir conforme a sua consciência, e, pegando no florete de um dos chefes do ministério, disse:

«Não. Recuso a submeter-me a tal intervenção. Não gosto da curva de Gauss, e além disso, aquelas camisas que a Rita me ofereceu já não me serviriam.»

«Mas isto é inaudito. Tem bem a noção do que está a dizer? Repare bem, está a suar. Terá a robustez física necessária para exercer as suas funções? Será possível que existam pessoas com uma postura tão desadequada exercendo funções tão exigentes?»

«Sim, é possível. Alguns como os senhores, e outros, com gravatas ainda mais foleiras.»

«Não está a par do conceito de liberdade de expressão democrática, pois não? Note bem, está a colocar um sério entrave ao funcionamento do sistema das fábricas de diplomas, criticando desnecessariamente, sem propor estratégias de remediação, respeitando o normal estado de desenvolvimento dos jovens beneficiários da fabrica de diplomas, permitindo a sua integração na nossa sociedade democrática e garantindo as taxas de produção desejáveis.»

Foi nesta altura que o escravo Michael iniciou um duelo de esgrima com os seus adversários. Lembrou-se de algumas lições dadas por um tio Francês quando era pequeno, e, surpreendentemente, derrotou os seus opositores, cuja técnica era mais débil do que um caracol picado por uma mosca tsé-tsé. Um por um, todos cairam por terra, deixando o chão repleto de lixo bio-degradável. Michael descobriu então que não precisava do casaco russo, como pensava, bastando-se a si próprio para enfrentar as adversidades da vida, e regressou ao Castelo do Lar, onde o seu exemplo contagiu os outros escravos seus colegas, e depois os escravos de outras fábricas, de todo o reino, que se revoltaram contra os seus governantes. O feitiço foi desfeito, e todos lhe deram os parabéns, tendo-lhe sido oferecido um casaco inglês, um bonito tweed azul-escuro, mais quentinho até que o casaco russo, e com uma gola mais confortável.

Por toda parte, as fábricas de diplomas foram demolidas, sendo construídas no seu lugar escolas, onde as crianças e jovens do reino puderam finalmente aprender Matemática, Línguas, História e Física, e até Crioulo, e algumas línguas indo-europeias. Os fiscais das fábricas de diplomas foram condenados a assistir a doses compactas de telenovelas durante um ano inteiro. Os escravos tornaram-se professores, e desde esse dia, em vez do comodismo medíocre e do queixume constante que faziam, descobriram o prazer de procurar a sua própria liberdade.

Gil Fonseca (Professor contratado no Ensino Secundário entre 1997 e 2000)
R. G. B. Fonseca


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