O Ensino da Fraude e a Comédia do Rigor

O presente artigo foi escrito em 2000/2001 por dois professores, ligados ao ensino secundário e superior, por ordem de entrada. Destina-se a alertar a sociedade Portuguesa relativamente ao estado catastrófico em que o sistema de ensino se tem vindo a encontrar, e das razões que justificam essa situação. Se na leitura do mesmo ocorrer uma sensação de ter estado a dormir durante as últimas décadas, será então a altura de acordar. Este assunto diz-nos respeito a todos, e as consequências desta fraude politicamente correcta a que continuamos a chamar ensino serão irremediáveis.

Em 2012 foi acrescentada "a Comédia do Rigor" por coincidência temática. Em 2016 foram acrescentadas as duas hiperligações seguintes:

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Conselho de Educação denuncia manipulação de notas

Os muitos males na universidade portuguesa
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Muito se tem discutido, nos últimos anos, acerca da qualidade do ensino em Portugal. Não é segredo para ninguém que, após o 25 de Abril, o sistema de ensino sofreu profundas remodelações e que a própria filosofia do sistema de ensino se tenha modificado de uma maneira irreversível. Durante esse período, em particular na última década e em especial durante o período de governação socialista a remodelação do sistema educacional tem sido muito activa, embora não do ponto de vista qualitativo. Essencialmente, a política demagógica dos últimos governos está a transformar o ensino numa espécie de fábrica de diplomas, onde são observadas como determinantes as estatísticas de progressão e de aprovação dos alunos, sem que haja a preocupação com a qualidade do ensino, onde a autonomia e o poder dos professores é reduzida ao mínimo, de modo a que possa haver o máximo controle destes por parte do estado; onde são aprovadas leis que dão ao ensino uma imagem de pseudo-democracia e pseudo-humanismo, à custa da transferência das responsabilidade de pais e de alunos para professores e de poderes de professores para pais e para alunos, mas onde em vez de se promover a autonomia, a criatividade e a qualidade dos alunos, se procura neles integrar, de uma maneira medíocre, uma filosofia de aceitação, de seguidismo, de estupidez intelectual, sem que haja a mínima preocupação com a qualidade dos conhecimentos que adquiriram ou desenvolveram.

Sem que haja, de nossa parte, um particular esforço em inventar expressões politicamente-correctas para descrever o estado de profunda catástrofe em que este e anteriores governos mergulharam o ensino, a expressão «fábrica de diplomas» adequa-se de uma forma perfeita aquilo que é hoje o ensino em Portugal; essencialmente, uma ferramenta política, manipulada pela mesquinhez de políticos desonestos de modo a satisfazer as primeiras necessidades dos eleitores, e onde os professores são cada vez mais transformados, de facto, em impressores de diplomas.

Os mecanismos burocráticos que regem os processos de avaliação no ensino básico e secundário são hoje em dia, altamente penalizantes para professores que reprovam mais do que uma percentagem «estatisticamente» aceitável de alunos ou que se atrevem, de uma forma rigorosa, a cumprir os parâmetros de avaliação ou a atribuir notas muito baixas: não é considerado «estatisticamente normal» dar um 3 numa escala de 20 a um aluno que não fez rigorosamente nada o ano inteiro; não é considerado «estatisticamente normal» reprovar mais do que 50% de uma turma de alunos que chegam ao 11º ano sem conhecimentos do 7º ou 8º e que nada fazem, não é considerado «pedagógico» atribuir a nota mínima a um aluno no básico; mas já é aceitável elevar um 9 para um 10 sem grande discussão; considerar todos os argumentos possíveis e imaginários para aprovar o aluno que por acaso é filho de um professor ou de uma pessoa influente. Um professor sabe que estará numa situação difícil se ao ter problemas com um aluno for o único professor a tê-los, porque será considerado a «prova» estatística como evidente da sua culpa....

Urge então perguntar porquê o sucesso da manipulação estúpida de argumentos estatísticos? Uma escola é considerada bem sucedida quando a percentagem de aprovações é elevada, mesmo que à custa do facilitismo descarado que o sistema impõe aos professores e que professores mais acomodados incutem nos mais novos. A resposta é que é fácil. De facto, é mais simples implementar uma política vergonhosa de facilitismo e aumentar artificialmente a quantidade de alunos com o diploma do 9º ano do que melhorar a qualidade do ensino. É mais fácil aumentar o número de vagas no ensino superior do que criar condições justas para que as pessoas possam aprender ou exercer uma profissão após finalizarem os estudos. É mais fácil, também, diminuir o grau de dificuldade dos exames do 12º ano, de modo a que as estatísticas «demonstrem» que os alunos são bem preparados...

Os conselhos de turma, constituídos maioritariamente por professores medíocres e marginalizados pelo sistema, acomodados ou mentalmente lavados por falsas pedagogias quando finalizam os cursos, são uma anedota: aprovam-se alunos à custa das desculpas mais incríveis que se possa imaginar, mesmo quando seja evidente que estes não atingiram classificações que justifiquem isso, quando o verdadeiro motivo, que nunca fica registado em acta, é que existe medo das inspecções do ministério e do trabalho que elas provocam. Para mais, existe uma lei «democrática» que dá o direito aos professores de um conselho de turma de alterarem as classificações (perdão, «propostas de avaliação») de um professor na sua própria disciplina, o que é feito com o maior descaramento, sem sequer haver uma preocupação em encontrar argumentos que validem tal alteração. Os professores que se recusam a aceitar estes processos são vistos como novatos, incompetentes ou causadores de problemas desnecessários. Até ao 9º ano de escolaridade o ensino é um autêntico folclore: são aprovados alunos com cinco ou seis classificações negativas, que assim contribuem para as estatísticas de «sucesso» da brilhante gestão educativa do nosso governo.

Não se pode ordenar a saída de sala de aula de um aluno que insulta e perturba, é preciso adoptar uma medida «pedagógica» e dar-lhe «tarefas». Mas este estado de coisas vai piorar ainda mais, quando se fizer aprovar a passagem administrativa dos alunos até ao 9º ano de escolaridade, e se a escolaridade se tornar obrigatória até ao 12º ano, quando as escolas se tornarem autónomas, e passarem a não contratar professores que não obedeçam às estatísticas... Aparte disto, aquilo que se observa como mais baixo e mais hipócrita, é o esforço (conseguido em muitos casos) de dar ao ensino uma imagem mais humanista: para «democratizar» as escolas deixam de haver conselhos directivos e passam a haver conselhos executivos (os professores só executam). As escolas passam a ter pseudo-orgãos de gestão constituídos também por encarregados de educação, alunos e funcionários, retirando assim o «ónus» aos professores de gerirem as escolas e desviando o poder de uma forma conveniente. Simultaneamente, aumentam-se as obrigações e o policiamento dos professores, numa estratégia desleal mas altamente demagógica que sugere uma imagem de (falso) rigor. Os professores vivem aterrorizados com a idéia de cometerem alguma falha numa vigilância de um exame, quando poderá surgir alguma «rigorosa» acção disciplinar. Existe uma razão fundamental para que este artigo se escreva hoje, e essa razão é de que, para variar, as pessoas se comecem a aperceber de que o problema de falta de qualidade do ensino em Portugal não se relaciona com uma questão de «má formação pedagógica» dos professores nem de qualquer característica mística que faz dos jovens de hoje em dia uma geração «rasca», mas é sim, em primeiro lugar, o produto de uma gestão criminosa e incompetente do sistema de ensino, aliada a uma política de laboratório de experiências para satisfazer o ego de falsos pedagogos medíocres e, também a uma atitude de profunda inércia e passividade de uma grande maioria de professores que se deixam transformar em «impressores de diplomas». Para isto contribui também a maneira abusiva como os professores no secundário são tratados, a política de contratações desumana que tenta fazer dos professores «descartáveis» (perdão, «candidatos» a professores) uma espécie de intrumentos sem personalidade própria. Era bom que abríssemos os olhos, porque o futuro do nosso país está a ser seriamente comprometido e os danos serão irreversíveis, e nessa altura, só nos poderemos queixar do que não fizemos, do que aceitámos quando poderíamos não ter aceite, daquilo que fingimos não ver, preferindo tranferir as responsabilidades para outros...

gilsmokes Gil Fonseca (Professor contratado no Ensino Secundário entre 1997 e 2000)
R. G. B. Fonseca

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É talvez um pouco estranho vir falar da realidade do ensino quando são tão poucas as pessoas que não têm um familiar no ensino nem estão no ensino, a estudar, a dar aulas ou a administrar. Porém, estou convicto de que os cidadãos estão enganados acerca do ensino e estão MUITO enganados acerca do ensino superior.

A minha experiência no ensino está essencialmente ligada às engenharias e às ciências. No entanto, penso que a minha descrição também é válida nas áreas das artes, letras, gestões, medicinas e outras. Isto porque todas as áreas do ensino pressupõem o mesmo desejo de aprender, melhorar, escapar à mediocridade e atingir a excelência. Ora é precisamente neste aspecto que reside o engano. Actualmente, ter um curso superior já não traduz uma competência superior. Diria até que ter um curso superior é mau sinal. Na grande maioria dos casos (actuais) significa apenas que não se arranjou nada melhor para fazer. É provável que ache incrível uma afirmação destas. Nunca encontrei ninguém que não ficasse espantado ao ouvi-la. Perguntam-me:
--Uma pessoa que queira aprender, para onde vai, então?
--Se aprender é realmente aquilo que quer fazer então, está bem, deve ir para a universidade mas, cuidado, você vai sentir-se muito sózinho. Actualmente, um diploma de curso superior não significa sucesso na aprendizagem mas sim sucesso na ultrapassagem dos exames, em que "ultrapassagem" contém todos os respectivos sentidos perjorativos incluindo o de ser dolosamente permitida. Claro que há excepções mas enquanto que há uns anos atrás era difícil encontrar um curso que não valesse a pena, hoje é difícil encontrar um que valha. A grande maioria dos estudantes não tem acesso aos poucos cursos superiores que ainda valem a pena. Apenas os privilegiados que estudaram em colégios particulares é que lá chegam. Por isso, se quiser preparar-se para a vida profissional então o melhor é empregar-se. Ao fim de cinco anos terá muito mais competência que um recém-licenciado. Se, por outro lado, o seu objectivo é obter um "canudo" ou fazer a vontade aos seus pais então a universidade é mesmo o melhor caminho. Neste caso prefira uma universidade pública pois nessas sai muito mais barato.
--O que me diz!!? Conheço vários licenciados que estão em empregos muito bons!
--Acredito que sim mas em quantos desses é que confia? Em quantos médicos é que confia? Por quantos é que passou antes de encontrar esses? Faço a mesma pergunta para engenheiros, arquitectos, advogados, gestores, tradutores, etc. Algum é licenciado há menos de cinco anos?
--Olhe, lá na firma está agora um rapaz muito novo que instalou os computadores em rede e os ligou aos telemóveis. Não demorou muito tempo e não tem havido grandes problemas. Nele confio.
--Tem a certeza de que ele é licenciado? Não, desculpe, tem a certeza de que ele é português?

Estes pequenos diálogos têm acabado em silêncio, sinal de dúvida ou de medo. Caro leitor, espero que quando acabar de ler este texto tenha passado do medo ao terror. É que estes pequenos diálogos não descrevem as causas profundas do problema nem transmitem a natureza catastrófica dos seus efeitos. Refiro, já a seguir, as duas causas fundamentais para a degradação do ensino superior.

  1. Pressão política no sentido de aumentar os números do "sucesso":
    1. Número de vagas nas instituições de ensino superior;
    2. Número de instituições de ensino superior;
    3. Número de cursos superiores;
    4. Número de licenciados;
    5. Número de alunos.
    Esta pressão revela-se através do único critério de financiamento do ensino superior: são favorecidas as instituições com os maiores números.
  2. Incapacidade das instituições de ensino superior para resistir à pressão política. Ignorar a causa anterior. Interesse por parte das instituições de ensino superior em responder rapidamente às directivas governamentais. Este interesse revela-se na quantidade de lutas pelo poder que decorrem no interior das instituições e na ausência de estratégia das mesmas.

Estas causas têm promovido uma degradação gradual da qualidade do ensino que se revela nos seguintes sintomas.

Os argumentos para implementar todo o reportório de medidas de facilitação são do tipo: "Senão ficamos em desvantagem relativamente ao outro departamento ou à outra faculade ou à outra universidade"; "Tem razão mas não podemos fazer isso porque é ilegal"; "Não temos dinheiro para despesas de capital, só despesas correntes"; "Não temos pessoal docente suficiente para dar aulas aos alunos que vão chumbar"; "Não temos espaço nas salas para dar aulas a todos os alunos inscritos"; "Talvez a situação melhore quando houver menos alunos"; "Não se esqueça de que estamos a cinco minutos da praia". É curioso como estes argumentos são óptimos para justificar critérios mais rigorosos de selecção dos candidatos às licenciaturas. Contudo, são usados precisamente em sentido contrário. Todo o ensino superior está inquinado desta hipocrisia de fazer ao contrário do que se diz e de dizer ao contrário do que se pensa embora sem pensar o que se faz. É suposto o ensino superior continuar superior mas não passa, hoje, dum ensino secundário extendido no tempo. Facto: os docentes universitários prescindiram de classificar positivamente apenas os alunos que merecem. Enquanto não surgir uma crise, facilitar a obtenção de diplomas é conveniente para políticos, professores e alunos. Só não convém à consciência de alguns e não ajuda ninguém.

Caro leitor, já que chegou até aqui, permita-me ainda que foque um aspecto importante: a Educação tem um impacto determinante na cultura e, por consequência, na economia duma nação a longo prazo. Por esta razão é muito grande a responsabilidade dos professores. Essa responsabilidade não pode ser escamoteada por causa de políticas de curto prazo. Note, caro leitor, não pretendo regressar ao passado, apenas lembro que, mais tarde ou mais cedo, seremos todos obrigados a tomar decisões difíceis e que nessa altura convirá estarmos devidamente preparados. Confesso que me sinto envergonhado por só agora divulgar o engano que ajudei a perpetuar.

Quando se entra para a universidade fica-se preso por ter cão e por não ter. Não se aprende mais nem por já se saber bastante nem por ainda não saber nada. O melhor é não tentar aprender e continuar a cometer os mesmos erros de sempre. E se ainda não está aterrorizado então inscreva-se na universidade. Vai ver que, ao fim de algum tempo, consegue um diploma que não servirá para nada.

ismoke Luís Gonçalves (Docente do Departamento de Física da FCT/UNL desde 1994)
L. Nobre G.

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Exames e a comédia do rigor

Os exames não são apenas sinónimo de rigor e exigência, são também um convite à repetição, à ausência de pensamento crítico e a uma tarefa perversa que se chama "preparação para os exames"; e são ainda uma ferramenta de gestão das escolas e de domesticação dos professores.



Os exames são a peça fundamental de uma máquina, dita de exigência e de rigor, que reina agora na escola portuguesa. Olhando de fora, um observador atento ao ecrã da ideologia seria levado a concluir que o pedagogismo foi substituído pelo avaliacionismo. Podemos medir o efeito desta máquina pelo modo como se impôs, quase como uma palavra de ordem com eco em todas as instâncias - alunos, professores, ministério, associações de pais - o apelo da "preparação para os exames".

Preparar os alunos para o exame é o que a escola devia fazer naturalmente, a partir do momento em que se trata da instituição que tem por função transmitir saberes, colocando em mútua presença, e segundo regras estabelecidas, os especialistas encarregados de os transmitir (os professores) e os sujeitos a quem a transmissão é feita (os alunos). Mas as coisas são muito mais complicadas porque os exames têm os seus códigos e exigências próprias, e é preciso conhecer-lhes as manhas. Daí que a preparação para os exames se tenha tornado uma tarefa autónoma, à qual se deve vergar o ensino do programa. Aparentemente, e ainda que tal mecanismo seja manifestamente perverso, todas as partes implicadas trabalham para o alimentar: os alunos, que exigem aos professores que as aulas sejam de preparação para os exames; os professores, que não podem senão responder a esse apelo e sentem que o mesmo exame que examina os alunos os avalia a eles; o Ministério da Educação, que através do Gave (Gabinete de Avaliação Educacional) assumiu como missão fornecer orientações para os exames e disponibilizar, no seu site, vasta documentação para estimular o treino de professores e alunos; a Confederação das Associações de Pais, que, confrontada com os fracos desempenhos dos filhos, veio acusar o diretor do Gave de "incompetência" e de ser por "culpa da política ministerial" que as escolas não conseguem preparar os alunos para "os desafios que os exames lhes colocam". Ou seja, de uma maneira ou de outra todos acham que o funcionamento regular da escola não basta como "preparação para os exames", e que tal tarefa deve constituir um esforço suplementar. Quem acha o mesmo, mas com um especial regozijo vedado aos restantes, são as editoras de livros escolares, que produzem uma enorme parafernália de materiais didáticos, apresentados como adjuvantes nessa grande missão que é a "preparação para os exames": resumos dos livros, sínteses, testes, fichas, coleções dos exames dos anos anteriores.

O aluno não é convidado a pensar, a interpretar, a escrever, mas a decorar chavões

Tanta fadiga, tanta mobilização e tão fracos resultados deveriam ser vistos como uma indicação de que algo está errado. Mas uma falaciosa oposição vicia o diagnóstico: de um lado, os defensores dos exames como sismógrafos e ao mesmo tempo indutores do rigor e da exigência; do outro, os que entendem denunciar os desvios perversos a que os exames conduzem, mas quase sempre em nome de princípios e suposições sem recorrerem à realidade das provas. Ora, pode defender-se o princípio da necessidade do exame, estar de acordo em que ele introduz critérios de rigor e de exigência - e até de justiça - na avaliação, mas ser contra estes exames e todo o sistema que eles servem e alimentam. Tomemos aqui como exemplo o exame de Português do 12º ano (introduzindo a observação cautelar de que, por falta de competência, não serão considerados os exames das disciplinas científicas). O que imediatamente chama a atenção é o facto de boa parte da prova exigir não que o aluno escreva, mas que ordene, escolha e associe frases já dadas. Temos depois algumas estrofes do Canto VI de "Os Lusíadas" e algumas perguntas de interpretação que incidem sobre a mitificação do herói. Quando se passa, depois, para um excerto do "Memorial do Convento", é novamente a questão do herói coletivo do romance que está em causa. Quem consultou os exames anteriores e leu os manuais escolares apercebe-se facilmente de que há umas quantas matérias com lugar cativo nos exames; e o aluno não é convidado a pensar, a interpretar, a escrever, mas a decorar chavões, a papaguear tópicos, a repetir interpretações fabricadas que circulam como um cânone que não admite desvios: ele é o herói coletivo do "Memorial do Convento", ele é a oposição entre o par Blimunda/Baltazar e o par constituído pelo Rei e pela Rainha, ele é epicurismo de Ricardo Reis, ele é "a dor de pensar" de Fernando Pessoa ortónimo. Na verdade, o aluno percebe muito cedo que nem precisa de ler as obras, apenas os resumos. E precisa sobretudo de saber os tópicos com os quais irá resolver as perguntas sobre os excertos das obras estudadas que lhe apareçam no exame, o qual apela à recitação e à reprodução dos chavões. Os textos literários são estudados como se tivessem interpretações fechadas e o exame, por sua vez, vai confirmar esse fechamento. Preparar-se para o exame consiste em treinar respostas já construídas a perguntas previstas. Quando finalmente o aluno chega ao item mais imprevisível e onde lhe é permitida mais liberdade e mais capacidade crítica, qual é o tema que lhe é proposto para dissertação? Nada mais nada menos do que a procura da popularidade através dos meios de comunicação de massas e das redes sociais. O estereótipo do tema parece escolhido para que os alunos, em vez de pensarem, debitem o senso comum. Quantos escaparão a tal fatalidade?

Dir-se-ia que a previsibilidade e o incentivo à repetição tornam fácil este exame. Talvez seja, mas consultando os programas e os manuais percebemos que a essa facilidade se sobrepõe algo que a vem perturbar: a incoerência, o desajuste, o inapropriado. Um pequeno exemplo: o aluno aprende a dizer, quando analisa um poema, o "sujeito poético" em vez de "o poeta" (e os manuais, tal como os exames, estão a abarrotar de "sujeitos poéticos"). Mas não aprende o porquê desta terminologia. O aluno é assim convidado, sistematicamente, a usar uma linguagem técnica e uma metalinguagem que não está em condições de entender cabalmente e na totalidade, a ter um discurso que pressupõe instrumentos que ainda não domina. Em suma: se o aluno, de facto, não foi treinado a ler e a interpretar, se a preparação para o exame até implica que ele saiba debitar chavões e estereótipos, o que acontece com frequência é a confusão, o baralhamento, a inadequação. Vejamos outro exemplo. No 12º ano, os alunos aprendem alguns conceitos básicos da narratologia, entre os quais os de analepse e prolepse. A coisa até parece simples e resolve-se geralmente dizendo que a analepse é o mesmo que o flashback e a prolepse consiste em evocar um acontecimento ulterior da história que está a ser contada. E eis que os manuais e outros materiais didáticos dão como exemplos de prolepses, no "Memorial do Convento", as referências aí feitas ao nosso tempo (por exemplo, o 25 de abril). Ora, essas referências remetem para o tempo da escrita e não podem ser designadas como prolepses. Porque é que um erro deste tipo se disseminou em grande parte dos manuais? Porque a repetição, e não o espírito crítico, é a regra (aparece uma vez e depois prolifera, sem interrupção); porque a tendência é ensinar coisas complicadas aos alunos como se fossem coisas simples (saber o que é uma prolepse implica perceber a diferença entre o tempo do discurso e o tempo da história) e, sobretudo, a fornecer terminologia técnica como se ela fosse um fim em si mesma.

Nos exames de filosofia, temos outra situação caricata: o programa é, desde há longos anos, de influência analítica. Mas as orientações para o exame vindas este ano do Ministério são muito mais informadas pela chamada filosofia continental. O que fazer? Terão hesitado muitos professores. Mas a resposta afigurou-se óbvia: seguir o imperativo de preparar os alunos para o exame e esquecer aquilo que, seguindo a lógica do programa, não serviria eficazmente esse objetivo.

Mas os exames não servem apenas para avaliar os alunos. Eles são um instrumento precioso de gestão das escolas e dos "recursos humanos", como se diz na linguagem gestionária do nosso tempo. A ideia de Maria de Lurdes Rodrigues, a de fazer depender a avaliação dos professores da avaliação dos alunos, não foi para a frente. No entanto, os professores não ficaram a salvo e vão experimentar de outra maneira as consequências dos exames aos alunos. Do resultado dos exames depende a avaliação das escolas, e da avaliação das escolas depende o crédito de horas a conceder-lhes. O que é que isto significa? Que esse é o critério para autorizar a abertura de mais ou menos turmas, a realização de mais ou menos atividades. Os exames como peça fundamental da máquina gestionária servem o desígnio de redução do número de professores, a par das turmas com o mínimo de 26 alunos, nas disciplinas regulares, e com o mínimo de 20 alunos, nas disciplinas de opção (o Ministério pode agora oferecer cinicamente, em muitas escolas, belas e reclamadas opções como Sociologia, Antropologia e Latim, pois sabe que nunca haverá alunos suficientes para formar uma turma).

Chegados a este ponto, seria altura de entrar num longo capítulo de descrição do que tem acontecido à mais desventurada e vilipendiada classe profissional: a dos professores. Resumindo bastante uma longa história, podemos dizer que os professores estão desde há bastante tempo sujeitos a estas duas regras que não passam de alíneas nos tratados de domesticação: fazer com que a sua legitimidade não tenha uma fonte mais elevada - por exemplo, o saber, algo que não move nem comove a escola atual - do que a dos próprios gestores do ministério; fazer com que eles não acedam a nenhuma espécie de autonomia. Deste modo, se outrora o tempo de trabalho do professor se dividia entre o tempo controlado e o tempo autónomo, hoje todo o seu tempo de trabalho é controlado (à hora, aliás). A única autoridade que conta hoje na escola é de ordem administrativa. Para perceber isto em toda a sua dimensão (que é a dimensão grotesca da caricatura), basta ler as "normas relativas aos professores vigilantes". Aí, em quatro páginas de normas, algumas delas insultuosas, fabrica-se o professor como um suspeito, um indivíduo propenso ao crime que é preciso vigiar (ficando assim no lugar do vigilante vigiado), de tal modo que justifica o uso de uma severa linguagem normativa, cheia de proibições (e até incitando, num determinado caso, a que seja policiado), onde é fácil descobrir um paradigma criminológico. Depois de identificarmos a parte mais visível da máquina implacável que, em todos os domínios, destituiu a autonomia dos professores e os fez entrar numa mecânica da subordinação, poderíamos pensar que lhes resta ainda o poder autónomo que advém da tarefa da correção dos exames. Nada mais falso. Os critérios de correção, lavrados em verdadeiros tratados (os critérios de correção têm mais páginas do que o enunciado do exame), fundam-se numa ciência para a qual não temos nome porque trata de hipóteses e de "cenários de resposta". Eles preveem tudo - todos os desvios, todas as incorreções, todas as imperfeições e incompletudes das respostas dos alunos - e para tudo o que preveem têm uma quantificação. Se, ainda assim, o professor, presumindo-se um avaliador competente, quiser operar um pequeno desvio e introduzir o seu critério de quantificação, logo saberá que a grelha Excel onde vai lançando a pontuação das respostas só aceita os números previstos pela ciência que projeta "cenários de resposta". No fim de todos os mecanismos de vigilância por que passou, há uma grelha Excel que lhe diz que ele não é nada e nunca será nada.

Texto publicado na secção Ideias & Debates do caderno Atual, pertencente à edição impressa do Expresso número 2072, de 14 de julho de 2012.


Publicado online por António Guerreiro (www.expresso.pt) às 16:42 de Segunda feira, 23 de julho de 2012 em http://expresso.sapo.pt/exames-e-a-comedia-do-rigor=f741631#ixzz28nsT1zPN


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