À Exma Ministra da Justiça

Francisca Van Dunem



A razão pela qual esta carta se escreve hoje representa mais do que a legítima atitude crítica e de inquestionável direito num Estado que se pretende democrático, constituindo também um necessário e urgente alerta para o estado do sistema de Justiça em Portugal.

Recentemente, passei pela infeliz experiência de participar numa audiência no tribunal de Torres Vedras, na qualidade de queixoso. Esta experiência ultrapassou em muito as minhas piores expectativas e os avisos de advogados que tenho conhecido, relativamente à ineficácia, à falta de imparcialidade, arrogância e prepotência institucional dos tribunais e do próprio sistema de Justiça Português.

Ainda que obviamente culpados pelos seus crimes, observei serem tratados com todo o benefício da dúvida e muitíssimo para além do razoável os criminosos; as suas atitudes desresponsabilizadas com argumentos do foro filosófico baseados numa pseudo-ética supostamente científico-jurídica ao jeito do copy-paste; e de forma escandalosamente manipulatória criada, com uma habilidade de uma infantilidade primária a ideia de que os culpados são justificados e desculpados pela suposta ‘provocação’ por parte dos queixosos.

Assim, inventa-se a culpa do lado de quem não a tem deste modo, inventando-se o peso na balança suficiente para a absolvição de quem cometeu crime mas goza de mais força testemunhal (ainda que obviamente falsa) e popularidade social, já que, não nos esqueçamos, em Portugal não respeitar a Lei é o normal e reagir agressivamente, ameaçar ou em alguns casos agredir quem exige o cumprimento da mesma é legítimo: quem está mal é quem faz bem; quem está bem é quem faz mal.

Por incrível que pareça, é exactamente o argumento da ‘normalidade’ e da ‘forma de estar normal das pessoas’ o argumento usado pelo tribunal, quando deveria ser o contrário: a mudança operada por uma minoria de cidadãos conscientes e exigentes é que merece ser valorizada para penalizar esta normalidade medíocre.

Assim, torna-se subjectivo aquilo que é objectivo, quando se trata de dados ou ‘indícios’ favoráveis ao queixoso; objectivo aquilo que é subjectivo, quando favorável aos criminosos (como falsos testemunhos e juízos de valor de testemunhas de criminosos quando elas próprias são provenientes do meio social, bem à conveniência dos agressores, como é típico dos meios pequenos) embora ninguém assuma isto, evidentemente.

No meu caso, o que vivenciei foi sentir-me sozinho e humilhado, perante um tribunal que me tratou como se fosse o advogado de acusação e eu, um criminoso, por perturbar a ‘ordem’ e a ‘paz’ social; ‘testemunhas’ aos molhos mentindo em unanimidade em favor dos que violaram os meus direitos. Foram, constituíndo quantidade que faria inveja a um desfile de carnaval invariavelmente ‘amigos’ de longa data, colegas e pessoas hostis à ordem que, inclusivamente, há anos presenciam abusos e nunca testemunharam o que viram. Gerações de medíocres e cobardes que sabem estar na posição confortável do lado popular.

Só que um tribunal não é um concurso de popularidade. E, por isso, o perturbador da ‘ordem’ social e dos ‘brandos costumes’ das gentes da terra, o ‘causador’ de ‘problemas desnecessários’ não está a ser julgado por ser popular. O que está em causa (ou estava) é a violação da Lei e dos direitos fundamentais.

A desonestidade intelectual, aliás bem incrustada nas diversas instituições que teoricamente deveriam promover uma sociedade justa e equilibrada, com igualdade de direitos e deveres para o benefício de todos acaba assim por ser a ferramenta major da hipocrisia dos tribunais e, dado o excessivo poder das ‘autoridades’ judiciais e o laxismo dos seus intervenientes, muitas vezes limitados por hierarquias absurdas, de fundamento sociologicamente ultrapassado, é usada com o maior à-vontade, esperando-se que os prejudicados não reclamem, não protestem ou ponham em causa o sistema em si, já que o poder está centrado naqueles que representam o próprio tribunal e, portanto, o próprio sistema, em vez de, como defende a constituição, estar centrado no indivíduo em si que, através dos seus direitos, deveria gozar de igual poder de desacordo e contestação, independentemente de estar em minoria ou em maioria; independentemente de estar em sintonia ou não com a pressão social, cultural ou local. É, portanto, com uma deslealdade hipócrita que a Justiça portuguesa trata quem mais se esforça para que justiça seja feita. E o que mais dizer de um país onde há quem ache necessário e razoável adjectivar a justiça de ‘jurídica’ para a distinguir da verdade propriamente dita?



Portugal tem, sem qualquer dúvida, um longuíssimo caminho a percorrer neste sentido e o primeiro passo para isso é reconhecer a realidade do Tribunal português como aquilo que é: uma farsa destinada a absolver aqueles que se enquadram no modo de estar de uma sociedade onde a normalidade é medíocre e esmagar a individualidade dos que promovem e exigem a mudança, ainda que à custa do abandono dessa normalidade medíocre. Num país onde até a coragem de poucos juízes é às vezes mal vista do ponto de vista mediático e impopular, torna-se ingrato recorrer ao sistema de justiça; dado isto, muitos nem acreditam que valha a pena fazer uso dele; afinal o que se pretende para aliviar uma carga burocrática enormemente pesada e ineficaz é precisamente dificultar o acesso à Justiça daqueles que lutam pela mesma.

O sistema de Justiça português é de facto injusto, desonesto, parcial, manipulatório, mesquinho e cobarde.

E embora eu não tenha a autoridade institucional para mudá-lo sozinho (nem a ilusão), acuso-o sem qualquer reserva, fazendo uso da minha autoridade cívica e ética:

A Justiça em Portugal é uma palhaçada.

Está na altura de reconhecer o óbvio.

2019/02/21

René Gil Bakker Fonseca